"Se você pensa que eu não penso, lhe asseguro: Eu estou ficando louco... Você pensa que engoli o nó que trago sem descer no meu pescoço"
(Alceu Valença - Vivo "1976")
Quando nós do NCA começamos a fazer exibições públicas nas periferias da Zona Sul de São Paulo, o intuito era, primeiro possibilitar que algumas produções que normalmente não chegavam ao conhecimento dos moradores do bairro fossem vistas conjuntamente e sempre que possível debatidas. Outra coisa era permitir que a população tomasse ciência de que pessoas daquela ou de outras regiões também produziam seus vídeos e estes falavam de nossa própria realidade por um olhar comum. Nessa época, em meados de 2006, explodiam diversas oficinas de vídeo e o surgimento de grupos que produziam era cada vez maior, porém as estratégias de exibição e distribuição eram poucas.
Nós tínhamos diversas idéias de como fazer uma exibição e pensávamos em vários lugares possíveis. Já nessa época um dos espaços que nos chamava a atenção eram os campos de várzea, principalmente pela forma como a comunidade o legitimava como espaço de lazer. Mas antes de efetivamente fazermos alguma exibição neste espaço, acabamos circulando por vários lugares, como: Vielas, bares, escadões, escolas e sedes de espaços culturais (Ongs, associações de bairro, etc). Várias situações foram nos preparando para pensar a exibição como uma intervenção urbana que merecia uma atenção especial. Uma constatação imediata foi a percepção de que a maior parte do público era composto por crianças, seguidos de senhores e senhoras idosas, e moradores de rua, somado a um ou outro jovem ou adulto que por ali passava e ficava, ainda que por muitas vezes reclamando do filme. Pois para eles ou era muito infantil ou adulto demais, ou não estavam entendendo nada. Já as crianças mesmo que inquietas eram atenciosas e reclamavam mais quando a pipoca acabava do que quando o filme não lhes agradava. Faziam o coro dos entusiastas os bêbados e moradores de rua que exclamavam com alegria a cada cena que lhes chamava atenção.
Além das impressões do público o que sempre deu o tom da exibição eram os espaços, sua geografia, sua biodiversidade e suas latentes necessidades. De cara o grande desafio era fazer exibição competindo com som alto do bar tocando forró, do carro que passava pulando por conta do volume do funk e as festividades de rua, elementos da própria natureza do lugar, compondo uma paisagem sonora que ainda somava à esses outros sons diversos de reformas barulhentas, motos estalando, carros, caminhões e ônibus. Mas relatando parece mais impressionante do que normalmente é, para quem mora no lugar os sons já são quase imperceptíveis. Nesses lugares o espaço ocupado de forma desordenada nunca deu ênfase ao potencial cultural das áreas públicas. Até por que todo lugar mais ou menos livre era um potencial lugar para construção de moradia. Assim sendo, vários fatores iam gerando novos desafios para a realização de uma projeção de filme como, falta de energia elétrica próximo das chamadas áreas de lazer, falta de limpeza e manutenção do espaço, e pouca luminosidade, enfim não havia e ainda não há um local pré estipulado para atividades culturais nesses locais à não ser os CEUs. Mas estes nessa época ainda existiam em número reduzido e dentro das favelas mesmo eram pouquíssimos, e que ainda por cima, com o decorrer dos anos foram se tornando espaços cada vez mais burocráticos e fechados ao public em geral.
Contudo, para cada um dos problemas acabávamos sempre arrumando uma saída. E na maioria das vezes os próprios moradores é que resolviam a situação. Por exemplo, a energia elétrica era sempre cedida por alguém, que não se preocupava com a conta, já que tinha gato de luz como muitos ali, mas aí vinha outra questão quem se disponibilizava estava longe e para ligar os equipamentos precisávamos de extensões gigantescas, que por sua vez, eram desligadas de tempos em tempos pelos carros que passavam sobre as tomadas ou por tropicões involuntários. E se não bastasse isso ainda tinha a questão da própria capacidade da corrente em suportar os equipamentos ligados. Mas a boa vontade acabava vencendo esses intempéries e a população se integrava a iniciativa de forma fantástica, uma estratégia pedagógica involuntária que emergia da necessidade e transformava à todos em co-produtores do evento. E assim seguiu, se não tinha onde estourar pipoca alguém oferecia a própria casa, se não tinha pipoca alguém doava, se faltavam cadeiras o povo trazia cada um a sua, ou fazíamos dos degraus do escadão nossa sala de cinema stadium, se não tinha nem um nem outro a galera levava vassouras para praça e limpava o chão pra gentaiada se sentar. Era bonito de ver. depois disso só restava sentar e assistir. Mas qual era o melhor filme? Como decidir isso?
À partir dessa indagação avaliávamos várias coisas, uma era a classificação indicativa, nada com muita censura, mas prezávamos por não passar cenas de sexo explícito ou imagens de violência extrema. Era básico já que o maior público sempre foi composto por crianças. Lembro de ouvir o Pixote (CineBecos) sitar uma vez que quem mandava na rua eram as crianças e não os traficantes e ali nas exibições isso se fazia cada vez mais evidente. Apesar de também já termos de negociar o espaço com os trabalhadores do “movimento”. Normal, eles também faziam parte da diversidade cultural do lugar, Assim como os vendedores de Hot dog, os pivetes soltando pipa, as donas de casa, os cachorros e os capoeiristas. E isso só fazia bem, pois religava as pessoas da comunidade, mesmo que por pouco tempo, permitia o encontro e a troca.
Certa vez fomos chamados por um mestre de Capoeira do Grajaú para exibir um filme que ele tinha pego emprestado no nosso acervo da Videoteca Popular*. O filme era "Quilombo" do Cacá Diegues e ele queria que nós fossemos exibir em sua aula de capoeira para crianças na associação de moradores do Pq. Cocaia. De primeira pensamos que seria um fiasco, pois o tipo de filme n˜åo era dos mais atrativos para o public em geral, mas não recusamos o pedido considerando que seria aberto para todos da comunidade que também quisessem assistir, porém não podiamos deixar de achar que o público ficaria entediado com a linguaguem do cinema novo. Porém nós estávamos completamente enganados! O mestre tinha feito várias aulas de história Afro-Brasileira no decorrer de seu curso e tinha lançado um desafio para a mulecada. Colou várias datas importantes nas paredes da Associação e nos pediu que parasse o filme nas cenas que representavam a data. Aí a sessão virou uma gincana, quando apareceram os navios negreiros ancorando nos portos brasileiros, paramos o filme e ele perguntou: -Chegada do primeiro navio negreiro no Brasil?! E foram todos correndo para a data exata colada na parede. Aí quem acertava ganhava um chaveiro de berimbau ou um DVD de capoeira. Foi fantástico, as crianças que tinham entre 7 e 12 anos ficaram vidradas vendo o filme cena por cena e não erraram uma data sequer, nascimento de Zumbi, quem foi Gamga Zumba, o que é quilombo, tudo na ponta da língua. E no final ainda tivemos uma surpresa fenomenal. Uma senhora da comunidade se aproximou e falou: -Nossa, eu adoro cinema novo, vocês podiam vir mais vezes passar estes filmes aqui, não? - Nisso já estávamos de queixo caído, mas ela ainda concluiu: -É que eu adoro esse tipo de filme, principalmente o neorealismo Italiano, Vittorio de Sica, Feline, são filmes que eu adoro e acho que tem muita relação com o cinema novo. Foi realmente surpreendente, mas não haveria de ser.
De alguma maneira nós quando íamos aos espaços para exibir, raramente nos dávamos conta de que ali já existia um sistema cultural forte, ancestral e com muito a nos transmitir, não era só um conglomerado de trabalhadores alienados, até por que nós também fazíamos parte daquela comunidade, e nosso gosto diferenciado por arte e cultura não nos fazia melhores que os demais. É fato que há uma enorme carência também nestes locais, e que esta também é fruto da aniquilação de saberes históricos que o povo foi ensinado a esquecer. E talvez por isso nosso imaginário acaba só vendo as necessidades, e desconsiderando que as pessoas que estão ali são tão capazes quanto nós de ver e discutir filmes e videos mais complexos. Pois, uma das piores exclusões que o sistema comete contra nós, periféricos, é a exclusão política, e isso está maquiado atrás de discursos que enfatizam que pobre só deve gostar de rap, filme hollywoodiano, e tem mais é que ficar batucando em lata pra gringo ver. Podemos e devemos estar para além de nossas fronteiras mentais e geográficas, para nos contaminarmos do que é nosso quanto humanidade. E até para perceber o quanto a nossa realidade é parte de um processo histórico e cultural anterior à nós.
Foi por meio destas experiências que em 2010 chegamos a efetivação de um sonho antigo o “1º Festival de Cinema de Várzea”, que levou para os campinhos do Grajaú uma série de filmes e vídeos independentes de todo o território nacional com o tema, futebol, samba e direitos humanos. Evento que foi à cima de tudo uma celebração das riquezas culturais do lugar, pois além de filmes e videos exibidos nos 8 dias de evento, tivemos ainda roda de samba, teatro, mesa de debate e muito futebol com vários times de diferentes faixas etárias.
Foram oito dias onde o público mostrou seu poder de voto consciente escolhendo a cada rodada qual video mais agradava e merecia ir pra final. As sessões aconteciam como dias de campeonato e a cada grade de curtas e médias metragens o voto popular elegia um finalista. Foi muito bacana, pois o público que era circulante nesses espaços fazia questão de estar até o final para definir sua preferência. Houveram várias surpresas, dentre elas a emocionante disputa de pênaltis que mandou pra final o curta “Contos da Várzea” e a carreata do pessoal do Jd. Rosana que levou a família e amigos para votar no curta ”Pizza na Quebrada”. A final então foi “Só Alegria”, ou melhor foi “Estrela D’Alva”. O rachão entre esses dois times foi de tirar o Ibope da copa do mundo, que ocorria paralelamente sem destaque. Deu treta, deu abraço, e até choro. O jogo ganho pelos anfitriões do Estrela D’Alva foi comemorado na Sessão com muito fervor, filme passando gente conversando, gente viva e feliz discutindo temas como habitação, mídia, tráfico e por que não futebol. Foi muito loco ver os videos “Contos da Várzea”, “Lamento Paulista” e “Canto do Acauã” compondo a tríade vencedora, ótimos vídeos premiados pela decisão de quem normalmente só tem direito de aceitar o que lhe é passado sem poder opinar. Foi mágico, foi de fato a efetivação da idéia de espectador. Palavra que vem do Grego especulucum que significa espelho. Pois ali se demonstrou que quem se vê devolve seu reflexo, sua impressão. O público não deve ser passivo e normalmente não quer ser assim, mas precisa de oportunidade para exercer seu direito a voz. Pois o mais revelador do espelho é o que ele entrega de nós e à partir disso as melhores relações se constroem, aquelas onde aprendemos a conviver e transformar nossos erros e acertos.
Texto de: Daniel FagundeS.
*A Videoteca Popular é um espaço dedicado a disseminação gratuita de títulos normalmente não encontrados na TV e em locadoras de bairro. Nessa época estava na Cidade Dutra, mas atualmente passa por renovação no projeto e busca nova sede.
Muito louco o relato! Deu vontade de chegar junto...
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